Questão 746, do Livro dos Espíritos de Allan Kardec: “O homicídio é um crime aos olhos de Deus? – Sim, um grande crime. Porque aquele que tira a vida do seu semelhante, corta uma vida de expiação ou de missão, e aí está o mal.”

Essa foi a questão que caiu recentemente, num culto no lar aqui em casa. Imediatamente, minha esposa fez uma pergunta muito pertinente, que repito aqui: “Mas não dizem sempre [no Espiritismo] que nada acontece por acaso e que, de certa forma, uma pessoa que tira a vida de outra está sendo um meio ou instrumento para concretização do destino da “vítima” (que, por escolhas próprias, precisava passar por essa experiência)? Se é assim, como pode alguém ‘cortar’ a vida de outra pessoa?”. Está aí a pergunta, coerente, e está posto o paradoxo.

Particularmente, eu gosto desse tipo de questão e costumo refletir bastante sobre elas, mas não costumo conversar com outras pessoas. Porém, resolvi começar a compartilhar das reflexões que faço, nem sempre conclusivas – é preciso ressaltar. Senti que essa questão era uma ótima oportunidade para isso, pois nos conduz a considerações mais complexas e põe à prova a coerência do sistema conceitual proposto pelo Espiritismo (e por outros sistemas que postulam o carma/destino, tais como o Budismo, etc.).

Três conceitos estão envolvidos nesse paradoxo e eles estão listados no título deste texto. Em geral, não há dúvida sobre seus significados e a maioria das pessoas é capaz de dar uma definição de cada um. Destino, se caracterizaria como a pré-determinação da vida de uma pessoa, em relação a tudo que ela viverá ou, pelo menos, dos acontecimentos mais importantes, por exemplo, seu desenlace. Acaso, por outro lado, seria quase o oposto no contexto dessa discussão, ou seja, seria uma alternativa à idéia de destino: ao invés de ter tudo traçado, nem tudo (acaso “moderado”) ou até nada (acaso absoluto) estaria predefinido para um indivíduo, sendo os fatos de sua vida um produto do acaso, isto é, aleatórios. Por fim, o livre-arbítrio, se caracteriza como a liberdade do indivíduo para fazer suas escolhas e determinar seu futuro, a depender, é claro, se estamos numa perspectiva determinística (causa e efeito) ou casuística. Três conceitos fundamentais para qualquer sistema religioso, mas eu diria que fundamentais para qualquer metafísica existencial.

Depois de uma boa discussão, consegui explicar para ela como eu (penso que) resolvo esse paradoxo. De saída, deixo claro que descarto completamente a ideia de acaso, qualquer que seja sua nuance. O acaso absoluto é fácil de descartar, pois a vida cotidiana nos dá diversas provas da causatividade. Ainda assim, para muitas pessoas parece ser possível tolerar e até “gostar” da ideia de um espaço restrito de aleatoriedade em nossas vidas, o tipo de espaço que permitiria que o destino de uma pessoa fosse alterado ou mesmo cortado (no caso de um assassinato, por exemplo) por um evento fortuito, sem qualquer relação com as escolhas da própria pessoa. E, num certo sentido, a resposta à questão 746 acima permite esta interpretação. Não podemos, portanto, tirar a razão das pessoas que assim pensam, pois essa é uma conclusão coerente com o quadro acima. Porém, isso gera um problema. Adotar essa hipótese do “acaso restrito” significa abrir mão da crença no determinismo, na causalidade. Ou, na melhor das hipóteses, significa distorcer bastante a idéia de causalidade, ao ponto de dizer que a “escolha” que levou a pessoa a ser assassinada teria sido, por exemplo, passar pela rua X ao invés da Y.

Porém, isso não é causalidade no sentido que considero apropriado, ou seja, a idéia de ação e reação, na qual ambas se equivalem em força, mas tem “direções” opostas. Não, essa idéia não serve para quem busca uma harmonia com o cosmos, como o fez grandes mestres espirituais e grandes gênios da ciência, das artes, etc. Todos buscam por uma coerência no universo e um dos ingredientes mais importantes para ela é a idéia de causalidade. Mesmo quando encontramos assimetria no universo, em geral ela se mostra aparente, resultando de uma compreensão ainda parcial do fenômeno em questão. Isso me faz lembrar do paradoxo posto pela física quântica, em relação à relatividade de Einstein. Mas isso ficará para outro texto. Adianto apenas que, até nesse caso, podemos encontrar uma solução que permita às duas teorias “fazerem as pazes”. Assim, vou assumir aqui que o acaso não existe absolutamente. Como então resolver o paradoxo acima? Bem, será preciso refletirmos sobre outro conceito, o de destino.

Confesso que não gosto desse conceito, pois considero que seja enganoso ou como se diz no inglês, misleading. Destino tem a ver com uma “pré-escritura” das vidas de todos os seres e está, acredito, intimamente associado à qualidade de oniciência atribuída a Deus. Em termos concretos: se Deus tudo sabe, então tudo está escrito. Simples assim. Ou não? Não, não é. Entendo oniciência não como um conhecimento de tudo a priori, mas sim como a capacidade de abarcar o todo ou, digamos, de ter acesso instantâneo a todas as “variáveis” do universo e, de posse delas, “calcular” o estado seguinte do universo. De certo modo, seria como o gerente que possui todos os relatórios necessários sobre a empresa e que seja capaz, a partir deles, de saber exatamente como a empresa estará “amanhã”. Ao conteúdo desses “relatórios”, dou o nome de carma. O carma é o que, a cada instante singular, determina o estado futuro do sistema, em nosso caso, do indivíduo. Quanto mais “distante” o estado almejado, porém, menos determinado ele está. Digamos que a previsibilidade dos estados futuros começa em 100% para o estado exatamente subsequente, mas vai diminuindo à medida que avançamos para os estados subsequentes. Por que isto ocorre? Justamente pelo fato de que o carma não é uma coisa estática, congelada. O carma é alterado a cada instante singular através da ação do indivíduo. Daí o livre-arbítrio. Se não podemos mudar o estado exatamente posterior, pois ele já foi determinado pelo carma e pela (in)ação presente, podemos mudar a todo instante os estados futuros, com base nas escolhas futuras que fazemos. Ou seja, a noção de destino é estática; a de carma, ao contrário, é dinâmica. O carma é uma carga (provalvemente em forma de energia ou “campo” de alguma natureza abstrata) que cada ser carrega, não um livro onde tudo está escrito.

Agora estamos em condições de resolver o paradoxo. A possibilidade de alguém “cortar” a vida de outra reside justamente no fato de que o momento singular em que o “algoz” executa sua ação é também um momento singular em que a “vítima” poderia alterar seu carma e prolongar por mais tempo sua existência, através de alguma ação. Qualquer pessoa é capaz de mudar o curso de sua existência, mesmo que a probablidade de isso acontecer seja tão baixa, como vemos em geral. Mas não importa se a probabilidade é quase zero. O que importa é que ela existe e se existe é preciso ser respeitada. Quem mata outro ser, está tirando a chance (ou seja, todas as pequenas probabilidades) daquela criatura mudar seu carma e ainda está desperdiçando a chance de melhorar o seu próprio. E este é sem dúvida o maior crime que se pode cometer.

É isso. Acredito que é uma visão coerente, mas está aí para ser discutida. O que você pensa?